RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRANSPORTE AÉREO: ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE TRANSPORTE DE CARGA E DE PASSAGEIROS COM BASE NO RECURSO ESPECIAL Nº 2.034.746/SP

Daniel Stefani Ribas

RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRANSPORTE AÉREO: ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE TRANSPORTE DE CARGA E DE PASSAGEIROS COM BASE NO RECURSO ESPECIAL Nº 2.034.746/SP

Ana Luiza Oliveira Barros da Cunha[1]

Daniel Stefani Ribas [2]

 

RESUMO

 

O presente resumo expandido teve como objetivo analisar a responsabilidade civil no transporte aéreo, com ênfase na comparação entre a proteção conferida ao transporte de passageiros e ao transporte de cargas. Para isso, foram consideradas as normativas internacionais, especialmente as Convenções de Varsóvia e de Montreal, bem como as disposições do ordenamento jurídico brasileiro, incluindo o Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro de Aeronáutica. O estudo buscou compreender as diferenças nos regimes de responsabilização aplicáveis a cada modalidade de transporte, abordando aspectos como a reparação de danos, os limites indenizatórios e as implicações jurídicas decorrentes da aplicação das normas internacionais em conjunto com a legislação nacional. Portanto, a fim de que pudesse melhor ser apreciado o tema, no tocante às questões expostas, a abordagem do presente artigo será efetivada a partir de pesquisa bibliográfica, documental e jurisprudencial, analisando artigos, livros e textos de autores que relatam sobre o tema, a fim de que seja dada notoriedade ao assunto.

ABSTRACT

This expanded abstract aimed to analyze civil liability in air transportation, with an emphasis on comparing the protection afforded to passenger transportation and cargo transportation. For this purpose, international regulations were considered, especially the Warsaw and Montreal Conventions, as well as the provisions of the Brazilian legal system, including the Consumer Defense Code and the Brazilian Aeronautics Code. The study sought to understand the differences in the liability regimes applicable to each mode of transportation, addressing aspects such as damage compensation, indemnity limits, and the legal implications arising from the application of international norms in conjunction with national legislation. Therefore, in order to better appreciate the subject concerning the issues raised, the approach of this article will be carried out through bibliographic, documentary, and jurisprudential research, analyzing articles, books, and texts by authors who report on the topic, in order to give prominence to the subject.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

A responsabilidade civil no transporte aéreo é um tema de extrema relevância no direito contemporâneo, pois abrange não apenas a proteção dos passageiros e das cargas transportadas, mas também a segurança das operações comerciais e a estabilidade das relações jurídicas internacionais. O crescimento exponencial da aviação comercial e de carga nos últimos anos tornou ainda mais essencial a regulamentação e a aplicação adequada das normas que regem esse setor, visando garantir tanto a proteção dos consumidores quanto a previsibilidade e segurança para as companhias aéreas.

O ordenamento jurídico brasileiro, alinhado às normativas internacionais, estabelece regras específicas para a responsabilização dos transportadores aéreos em casos de danos causados aos passageiros e às mercadorias transportadas. Nesse contexto, o Recurso Especial nº 2.034.746/SP constitui um precedente fundamental para a compreensão das distinções jurídicas entre o transporte de carga e o transporte de passageiros, reafirmando a aplicação das Convenções de Varsóvia e de Montreal e sua prevalência sobre a legislação consumerista nacional em determinadas circunstâncias.

Além disso, a responsabilidade civil no transporte aéreo não se limita apenas à indenização por eventuais danos, mas também se insere em um contexto mais amplo de proteção ao consumidor, equilíbrio contratual e harmonização entre normas nacionais e internacionais. As controvérsias jurídicas envolvem, entre outros aspectos, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em conjunto com as convenções internacionais e as possíveis antinomias decorrentes dessas normativas.

Diante desse cenário, este estudo tem como objetivo analisar de forma aprofundada as diferenças normativas entre o transporte de passageiros e de carga no transporte aéreo, identificando os regimes de responsabilização aplicáveis, os limites indenizatórios e os impactos da jurisprudência recente sobre a matéria. Dessa forma, busca-se contribuir para a compreensão das diretrizes que orientam a responsabilidade civil no setor e fornecer subsídios para futuras discussões e aprimoramentos na legislação e na jurisprudência aplicáveis. é um tema de significativa importância no direito brasileiro, abrangendo a proteção de passageiros, a segurança no transporte de mercadorias e a previsibilidade nas relações comerciais.

Incialmente, apresentam-se considerações sobre as atualidades da responsabilidade civil. A seguir, serão apresentadas as características do transporte de carga e de pessoas. Logo em seguida, é apresentada uma análise do recurso especial nº 2.034.746/SP e, por fim, as considerações sobre a interpretação do transporte de carga e passageiros.

O método adotado no presente artigo é o hipotético-dedutivo, com base na legislação, doutrina e jurisprudência

 

  1. RESPONSABILIDADE CIVIL E SUAS ATUALIDADES

 

A responsabilidade civil atual vem passando por uma reformulação e reestruturação, essa reestruturação envolve uma responsabilidade civil que busca prevenir eventos danosos e beneficiar a sociedade com essa segurança, ademais, somam-se a tais características os atos posteriores ao evento danoso, atos de suporte imediato que diminuem a extensão do dano, os quais também devem ser considerados (Braga Netto, 2022, p.204).

Reformulação esta, que a Responsabilidade Civil vem repassando, acrescentando aos meios de interpretação do tema as funções da responsabilidade civil, funções estas que, uma vez aplicadas na interpretação da responsabilidade, garantem maior efetividade em sua aplicação, seja nas interpretações ou decisões, funções estas, divididas em três: a função compensatória; precaucional e punitiva (Rosenvald, 2017, p.118.).

Renovar e interpretar novos conceitos e institutos complementares reforçam a necessidade de uma aproximação ao caso concreto, o que, no âmbito da responsabilidade civil, é essencial, de forma que a extensão do dano deve se aproximar do caso efeito (Alves, 2021, p.108).

De maneira que essa necessidade de entendimento das funções para uma melhor aplicação da responsabilidade é o caminho a ser adotado, sendo que as características das funções são as seguintes: A função compensatória visa restaurar o status quo do lesado, proporcionando uma compensação pelo mal sofrido, mas se limitando as partes evolvidas, não promovendo um impacto positivo na sociedade (Stoco, 2014, p.77).

A função precaucional, por sua vez, busca valorizar atos preventivos que antecedem o dano, incentivando uma cultura de cuidado e responsabilidade, reconhecendo que medidas preventivas devem refletir na redução das indenizações (Pires (2021).

Por fim, a função punitiva tem como objetivo punir o causador do dano de forma exemplar, dissuadindo comportamentos futuros semelhantes, criando um efeito preventivo geral e especial, ainda que sua aplicação exija moderação e adequação ao caso concreto, assim, a responsabilidade civil deve ser vista de forma integrativa, garantindo não apenas a compensação, mas também a prevenção e punição, valorizando as boas práticas nas relações de trabalho e empresariais (Vaz, 2009, p.53).

De maneira que, no Brasil, a função punitiva hoje se baseia no sopesamento das indenizações, mas ainda é muito pouco explorada. Em especial no direito do consumidor, essa função deveria ser melhor aplicada, diante da violação constante e reiterada de determinados direitos, ademais, no âmbito do consumidor, as violações de direito hoje são tratadas como meros aborrecimentos, esquecendo-se dessa integração que a responsabilidade civil envolve, entre o individual e o social (Rosenvald, 2019).

Essa integração de interpretações ao caso concreto favorece não só a vítima, mas também o operador do direito, para superar a dificuldade da quantificação do dano, a responsabilidade civil se apresenta também com a definição cada vez mais clara de danos autônomos, somados aos danos extrapatrimoniais, que também se ramificam, superando o dano moral, tratado agora de forma autônoma como violação dos direitos da personalidade, somam-se, ainda, como direitos extrapatrimoniais, o dano estético, o dano pela perda de uma chance e o dano existencial (Braga Netto, 2022, p.222).

Essa ramificação e individualização do dano se alinha a uma tentativa de diminuir os parâmetros para a extensão do dano e sua eventual quantificação para uma indenização, já que, no ordenamento jurídico brasileiro, sofremos com a ausência de critérios legais, sendo estes complementados e definidos pela jurisprudência, mas de forma não vinculativa e sim complementar, considerando aspectos como a gravidade do dano, a culpa do ofensor, a conduta da vítima em mitigar o prejuízo, a irreversibilidade da lesão, a vedação ao enriquecimento sem causa e a condição econômica do ofensor (Braga Netto, 2022, p.284-289).

Quanto ao enriquecimento sem causa, esse fator deve ser repensado, uma vez que a razão para a indenização, seja no valor do dano ou em um montante superior à sua extensão, decorre de uma sentença proferida pelo juiz, na condição de representante do Estado, assim, o valor maior não constitui um simples descompasso, mas sim um reconhecimento estatal, não sendo enriquecimento sem causa, e sim um enriquecimento fundamentado pelo Estado (Miragem, 2021, p. 11).

No aspecto da conduta da vítima ao mitigar o dano, deve-se acrescentar uma cultura de interpretação em que o causador do dano preste o devido apoio, a fim de minimizar os efeitos e proporcionar conforto após o ocorrido, com atitudes de solidariedade. Excluem-se, por óbvio, situações em que o próprio causador do dano também sofra um abalo ou impedimento que o impossibilite de praticar tais atos (Ribas, 2024, p.52).

Essas novas interpretações devem, sim, estar presentes em qualquer análise da responsabilidade civil, independentemente de se tratar de relação de consumo ou não, diante da necessidade de novas práticas interpretativas sobre o tema, como no transporte aéreo, que veremos a seguir.

 

  1. RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS E CARGAS

 

A responsabilidade civil no transporte aéreo refere-se à obrigação legal do transportador em reparar os danos causados durante a execução do contrato de transporte. No Brasil, essa responsabilidade é regulamentada por legislações internas, como o Código Civil (Lei nº 10.406/2002) e o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/1986), além de convenções internacionais, como a Convenção de Varsóvia e a Convenção de Montreal (Gagliano; Pamplona Filho, 202, p.63).

Como vislumbrado anteriormente, a responsabilidade civil do transportador aéreo em voos internacionais é regulamentada tanto por Convenções internacionais, promulgadas no Brasil através de decretos, como também pelas normas constitucionais e legislação consumerista. A doutrina e a jurisprudência iniciaram debates sobre as divergências encontradas, haja vista que de um lado verificou-se a limitação da responsabilidade do transportador com teto indenizatório preestabelecido, enquanto por outro lado notou-se a garantia do ressarcimento amplo com resguardo no princípio da reparação integral.

Destarte, considerando que o campo de aplicação de normas é coincidente entre as Convenções de Varsóvia e de Montreal e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) (Brasil, 1990), no que diz respeito à responsabilidade civil do transportador aéreo, e, no entanto, há a imposição de regras divergentes, visualiza-se uma antinomia jurídica. São três os critérios apresentados pela doutrina: cronológico, hierárquico e da especialidade, fundamentais para a solução de antinomias.

Os princípios que regem a responsabilidade civil no transporte aéreo incluem o princípio da reparação integral, que assegura que a vítima deve ser compensada por todos os prejuízos sofridos (Diniz, 2022, p.598).

Outrossim, destaca o princípio da objetividade, que dispensa a necessidade de comprovação de culpa para a responsabilização do transportador (Silva, 2020, p. 585).

Além disso, há o princípio da limitação da responsabilidade, aplicado em casos específicos, como no transporte de carga, em que a indenização está sujeita a limites fixados em convenções internacionais (Marques, 2022).

As Convenções internacionais de Varsóvia e de Montreal prevalecem sobre o CDC para efeito de limitação da responsabilidade material das empresas de transporte aéreo em caso de falhas na prestação de serviço de voos internacionais, conforme entendimento sedimentado pelo STF no tema 210 da repercussão geral. Contudo, referidos pactos não se aplicam às hipóteses de dano extrapatrimonial, conforme tese fixada no tema 1.240 da Corte Suprema (Brasil, 2017).

 

Tema 210 do STF – tese firmada: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor” (Brasil, 2017).

 

No transporte de passageiros, a responsabilidade do transportador é objetiva, conforme dispõe o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), bastando a comprovação do dano e do nexo causal para a configuração do dever de indenizar, as indenizações abrangem danos materiais e morais, e não há limitação expressa de valores, sendo aplicado o princípio da reparação integral (Silva, 2020, p.585).

A jurisprudência tem reafirmado a responsabilidade das companhias aéreas em casos de atrasos, cancelamentos e extravios de bagagem, conforme decisões do STJ (Brasil, 2023).

Para o transporte de carga, a responsabilidade do transportador também é objetiva, mas há limitações indenizatórias previstas em normas internacionais. A Convenção de Montreal estabelece um teto em Direitos Especiais de Saque (DES), salvo em casos de dolo ou culpa grave por parte do transportador. O objetivo dessa limitação é proporcionar maior previsibilidade e segurança jurídica nas relações comerciais internacionais (Diniz, 2022, p.319-328).

Ademais, não podemos deixar de lado os casos de fortuito interno e externo como formas de responsabilização, o fortuito interno ocorre quando a própria empresa dá causa ao dano, estando relacionado diretamente com o transporte (Braga Netto, 2022, p.757), como exemplo, temos uma empresa de aviação que necessita fazer um reparo, ainda que de urgência, e impede o voo, o reparo é previsível, uma vez que as condições da aeronave devem estar sempre sob constante verificação, não sendo, portanto, excludente de responsabilidade.

Agora, voltando-nos ao fortuito externo, quando o nexo causal não tem relação com o transporte, especialmente em eventos climáticos, deve ser excluída a responsabilidade do transportador, em um primeiro momento (Braga Netto, 2022, p.757). Contudo, diante da interpretação que se deve dar, cancelar um voo em virtude de situações climáticas severas não exclui o dever de informação e remarcação do voo para o consumidor ou a devida prestação do transporte de mercadorias.

Sendo necessária a análise do caso específico para a delimitação da responsabilidade e a obrigação de indenizar.

 

  1. ANÁLISE DO RECURSO ESPECIAL Nº 2.034.746/SP

 

O Recurso Especial nº 2.034.746/SP, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), trata de um caso de extravio de carga em transporte aéreo internacional, a controvérsia girou em torno da aplicação da Convenção de Montreal e da limitação do valor indenizatório, dessa forma, o julgamento foi de grande relevância para a consolidação do entendimento sobre a prevalência dos tratados internacionais em detrimento da legislação nacional em determinados aspectos da responsabilidade civil no transporte aéreo (Brasil, 2023).

A decisão proferida pelo STJ reafirmou a aplicação da Convenção de Montreal, determinando que o teto indenizatório estabelecido deve ser respeitado, salvo em situações de dolo ou culpa grave do transportador, isso reflete uma tendência do judiciário em assegurar previsibilidade nas relações contratuais internacionais, garantindo equilíbrio entre as partes envolvidas, o entendimento do tribunal reforçou que a limitação de indenização prevista na convenção se sobrepõe ao Código de Defesa do Consumidor, excetuando-se as hipóteses em que há falha grave do transportador que justifique a reparação integral (Silva, 2020, p. 583-585).

Ademais, o acórdão destacou a necessidade de harmonização entre as normas internacionais e o ordenamento jurídico interno, argumentou-se que a Convenção de Montreal, por ser um tratado assinado pelo Brasil e internalizado no ordenamento jurídico nacional, deve prevalecer sobre legislações ordinárias em casos de conflito normativo, conforme estabelecido no Tema 210 do STF. Essa diretriz consolidou a aplicação das convenções internacionais ao transporte aéreo internacional, restringindo as possibilidades de contestação por parte dos consumidores (Marques, 2022, p.174-180).

Outro ponto relevante abordado no julgamento foi o impacto da decisão para os contratos de transporte e seguros, ao garantir a prevalência da Convenção de Montreal, o STJ reforçou a segurança jurídica para as empresas do setor, proporcionando maior previsibilidade financeira em relação às indenizações e evitando o risco de condenações excessivas, esse fator tem influência direta na precificação dos serviços de transporte aéreo e no planejamento estratégico das companhias aéreas (Diniz, 2022, p.319-328).

Por fim, a decisão também refletiu sobre a diferenciação entre danos materiais e extrapatrimoniais. O entendimento do STJ corroborou a tese firmada pelo STF no Tema 1.240, segundo a qual as limitações da Convenção de Montreal não se aplicam aos danos morais. Dessa forma, embora a responsabilidade do transportador seja limitada para os danos materiais, os consumidores ainda podem pleitear reparação por danos extrapatrimoniais sem que haja limitação prévia, garantindo proteção jurídica ao passageiro em casos de violação dos seus direitos (Brasil, 2023).

Além disso, a aplicação da Convenção de Montreal também possui implicações relevantes para o mercado segurador, uma vez que as apólices de seguros para transporte aéreo passam a ser elaboradas com base em parâmetros de responsabilidade mais previsíveis, o que contribui para a estabilização do setor e a redução de litígios desnecessários (Miragem, 2024, p.176).

Em suma, o julgamento do STJ representou um avanço na consolidação da jurisprudência sobre a responsabilidade civil no transporte aéreo internacional, equilibrando interesses empresariais e direitos do consumidor, ao mesmo tempo em que promove a uniformidade jurídica necessária para as relações comerciais globais, esse posicionamento não apenas garante maior previsibilidade ao mercado, mas também reforça o compromisso do Judiciário brasileiro com a observância dos tratados internacionais, contribuindo para a segurança e eficiência das operações de transporte aéreo.

 

  1. DIFERENÇAS ENTRE O TRANSPORTE DE CARGA E DE PASSAGEIROS E SUAS INTERPRETAÇÕES

 

 O regime jurídico aplicável no transporte de passageiros é regulado predominantemente pelo Código de Defesa do Consumidor, garantindo a reparação integral dos danos, o transporte de carga segue as disposições da Convenção de Montreal, que impõe limites indenizatórios específicos (Diniz, 2022, p.319-328).

Essa distinção resulta na aplicação de regimes jurídicos distintos, o que influencia a forma como as demandas judiciais são conduzidas e julgadas. De maneira que em ambas as modalidades, aplica-se a responsabilidade objetiva, ou seja, não é necessário demonstrar culpa para a reparação do dano, no entanto, no transporte de carga, a indenização é limitada, salvo em casos de dolo ou culpa grave do transportador (Silva, 2020, p. 583-585).

 Para os passageiros, a responsabilidade do transportador é mais rigorosa, refletindo o princípio da proteção do consumidor (Marques, 2022, p.176). No transporte de passageiros, não há limitação prévia para os valores de indenização, sendo assegurado o direito à reparação integral dos danos materiais e morais, por outro lado, no transporte de carga, a indenização é limitada em conformidade com a Convenção de Montreal, exceto em casos de conduta dolosa ou gravemente culposa (Brasil, 2023).

Tal limitação é justificada pela necessidade de previsibilidade e estabilidade nas operações comerciais (Diniz, 2022, p.319-328).

Sendo a quantificação dos dados extrapatrimoniais uma das maiores dificuldades do ordenamento jurídico brasileiro e do direito privado, tendo em vista que a interpretação do direito privado passa por uma necessidade de reformulação, essa reformulação perpassa pela aplicação de novas técnicas de interpretação, em especial a introdução das funções da responsabilidade civil, além da reformulação dos próprios procedimentos de acesso à justiça, como os juizados especiais (Nery; Nery Junior, 2019, p.184).

Dar visibilidade e apreciação à reformulação de institutos é o caminho necessário para o Direito Privado. Focar em uma interpretação individualizada na extensão do dano requer conhecimento e parâmetros, não apenas de quantificação, mas principalmente de interpretação do Direito Privado e de sua aplicação, muitas vezes, esses aspectos são deixados de lado pelo Judiciário devido ao grande volume de processos (Ribas, 2024, p.51).

Casos de violação aos direitos do consumidor, por exemplo, são direcionados aos Juizados Especiais Cíveis, que, devido à sua ideia de celeridade, não apenas aplicam ritos mais simplificados, mas também acumulam interpretações defasadas no âmbito da responsabilidade civil (Ribas; Mouro; 2024). Esquecendo o caráter dissuasório da responsabilidade civil, que visa evitar novos danos por meio de reprimendas adequadas e proporcionais, muitas decisões acabam resultando em indenizações irrisórias, esses valores, na maioria das vezes, não causam qualquer incômodo ao causador do dano, comprometendo a efetividade da reparação e a prevenção de novas infrações (Pizzol, 2020, p.272).

O próprio conceito de “mero aborrecimento”, frequentemente utilizado de forma equivocada como excludente de responsabilidade civil, prejudica os consumidores em geral, não apenas no âmbito das viagens aéreas, os danos recorrentes são extremamente prejudiciais à sociedade, e pouco é feito para reduzi-los, o caminho mais efetivo para o brasileiro é justamente a aplicação adequada da responsabilidade civil e da indenização, com apresenta Ribas; Santos (2024) “[… ] incômodos   gerados   com   frequência   em   grande   parte   da   população,   e   revalorizar   a Responsabilidade  Civil  em  tempos  da  cultura  da  autocomposição  e  uma  falsa  sensação  de responsabilização […]”.

Além disso, até mesmo leis que desobrigam ou reduzem a vulnerabilidade do consumidor são prejudiciais ao ordenamento jurídico e à correta interpretação do Direito do Consumidor, o CDC foi construído com base na premissa de que o consumidor é a parte mais frágil da relação de consumo, sendo necessária uma proteção especial para equilibrar essa relação, medidas que tentam relativizar essa vulnerabilidade podem resultar na perda de direitos fundamentais e dificultar o acesso à justiça, comprometendo o caráter protetivo da legislação consumerista e a efetividade da responsabilidade civil (Dias; Glória; Silva, 2018).

Interpretar a carga de forma diferente, como furto de um direito negocial privado e até mesmo como contratos autônomos, sem ser contratos de consumo, apresenta um acerto de interpretação, de forma que tal situação, definida pelo STJ, permeia toda a sociedade, sendo fonte para outras decisões, uma vez que a necessidade de se destacar e interpretar o direito do consumidor e suas características é o caminho a ser seguido, de maneira que tal REsp, ao ser julgado, corrobora com mais uma fonte de interpretação no campo do direito, sendo o direito judicial uma fonte interpretativa, baseando-se e subdividindo-se em alguns conceitos, sendo eles, a) decisões judiciais; b) realização judicial do direito; c) inovações jurídico-normativas; d) precedentes jurisprudenciais; e) fonte do direito (Aleixo, 2019, p.71).

De forma individualizada, esses conceitos se fundamentam nas seguintes situações: as decisões judiciais, sendo o resultado do pronunciamento de autoridade pertencente ao Poder Judiciário; a realização judicial do direito se baseia no conjunto das atividades intelectuais envolvidas no processo; as inovações jurídico-normativas se apresentam no uso do intelecto inovador do ordenamento jurídico; já os precedentes judiciais vinculam determinada parcela normativa generalizada de alguns temas; e, por fim, a fonte do direito, sendo uma forma idônea de criação de normativas e interpretações baseadas em decisões judiciais (Aleixo, 2019, p.71).

As diferenças na responsabilidade civil têm impactos diretos na atuação das companhias aéreas, na proteção dos consumidores e na segurança das relações comerciais, os consumidores com o regime mais protetivo garantem maior segurança jurídica, enquanto as transportadoras de carga operam sob um regime de maior previsibilidade financeira (Gagliano; Pamplona Filho, 2021). Além disso, a limitação da indenização no transporte de carga influencia a precificação dos serviços e a alocação de riscos entre as partes (Marques, 2022, p.174).

Outro aspecto relevante é a dificuldade enfrentada pelos consumidores no transporte de carga ao buscar reparações superiores aos limites fixados, o que exige a demonstração de dolo ou culpa grave para a superação desses limites (Silva, 2020, p. 583-585).

Ademais, as companhias aéreas, no mundo tecnológico atual, não são mais responsáveis apenas pelo transporte como atividade-fim. Deve-se acrescentar o pós-venda e o pré-venda, que incluem o site de venda de passagens, seja próprio ou de terceiros, estando sujeitos à responsabilidade solidária prevista no CDC, isso também se aplica ao sistema de milhas e à emissão de passagens, estendendo-se, em alguns casos, até mesmo à locação de hotéis, a depender da forma de aquisição e uso do serviço pelo consumidor e a companhia aérea (Miragem, 2019).

 

  1. CONCLUSÃO

 

A análise do Recurso Especial nº 2.034.746/SP evidencia diferenças substanciais entre a responsabilidade civil no transporte aéreo de carga e de passageiros. O estudo permitiu compreender que, enquanto o transporte de passageiros é regido por princípios protetivos do consumidor, garantindo uma reparação ampla e integral, o transporte de carga está sujeito às convenções internacionais, que impõem limites indenizatórios para garantir previsibilidade e segurança jurídica.

Além disso, observou-se que a jurisprudência tem consolidado a prevalência das convenções internacionais sobre a legislação nacional, reafirmando o entendimento de que os limites indenizatórios estabelecidos devem ser respeitados, salvo em casos de dolo ou culpa grave do transportador. No entanto, há uma clara distinção entre os danos materiais e os danos extrapatrimoniais, sendo que as limitações previstas nos tratados internacionais não se aplicam a danos morais, conforme definido pelo STF no Tema 1.240.

Outro aspecto relevante é o impacto dessas normas sobre o setor aéreo, especialmente no que diz respeito à segurança jurídica e à previsibilidade para as companhias aéreas. O respeito às convenções internacionais permite um planejamento mais eficiente por parte das empresas do setor, garantindo maior estabilidade e redução de litígios. Por outro lado, a proteção ao consumidor continua sendo um fator fundamental, exigindo que os transportadores atuem com diligência para minimizar riscos e evitar falhas na prestação de serviços.

Dessa forma, este estudo reforça a necessidade de um equilíbrio entre a segurança jurídica das transportadoras e a proteção dos direitos dos passageiros e remetentes de carga. A harmonização entre o ordenamento jurídico nacional e os tratados internacionais é essencial para garantir a eficácia das normas e a justa reparação em casos de dano. O aprofundamento da jurisprudência e a continuidade das discussões acadêmicas sobre o tema são fundamentais para o aprimoramento das políticas regulatórias e para a construção de um sistema de responsabilidade civil que atenda aos interesses de todos os envolvidos no transporte aéreo.

Outrossim, é imprescindível que o Poder Judiciário mantenha uma postura coerente e previsível nas suas decisões, assegurando que as normas aplicáveis sejam interpretadas de maneira uniforme, evitando insegurança jurídica tanto para consumidores quanto para as companhias aéreas. Nesse contexto, a capacitação dos profissionais do setor jurídico e a disseminação de conhecimento sobre as regras aplicáveis ao transporte aéreo são elementos essenciais para a evolução e o aprimoramento do sistema de responsabilidade civil.

Por fim, o avanço tecnológico e as mudanças nos modelos de negócios do setor aéreo também devem ser acompanhados de uma atualização legislativa e jurisprudencial adequada, garantindo que as normas continuem a atender às necessidades do mercado e da sociedade. O fortalecimento das políticas públicas e regulatórias voltadas para o setor aéreo, alinhadas às convenções internacionais e aos direitos dos consumidores, contribuirá para a criação de um ambiente mais seguro, justo e previsível para todas as partes envolvidas.

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[1] Paralegal. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior; especialista em Direito da Moda pelo Milano Fashion Institute (Milão) e pela Fordham University (Nova Iorque); pós-graduada em Fashion Law pela Faculdade Santa Marcelina (São Paulo); Mestranda em Direito Privado pela FUMEC (Belo Horizonte).

[2]Advogado. Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia, com linha de pesquisa em Direito Privado (Autonomia Privada, Regulação e Estratégia), pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC/Belo Horizonte). Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (FIVJ/Juiz de Fora). E-mail: danielstefani.adv@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7888-0755.